Luanda – A construção de um memorial às vitimas, escolas, empresas e postos de saúde são, dentre outros, projectos que a “Fundação 27 de Maio” pretende materializar numa primeira fase para assistir os seus associados em todo país e não só, na eventualidade de o Governo angolano indemnizar às vítimas dos acontecimentos que teve início a 27 de Maio de 1977 e conheceu o termo em 1979, poucos meses antes da morte de Agostinho Neto.

O 27 de Maio era comemorado como feriado nacional de 1977 até 1991
*Óscar Ganga
Fonte: Club-k.net
Para a história contemporânea de Angola fica registado o “fatídico” dia 27 de Maio de 1977, há 42 anos, do “massacre” de mais de 80 mil angolanos por consequência de divergências política que viria dividir o MPLA em duas alas, a de Agostinho Neto, primeiro Presidente da República Popular de Angola, e de Nito Alves, resultando num confronto político sem precedentes no seio do mesmo partido que governa Angola desde 1975, quando passavam apenas dois anos de independência do colonialismo português.

Há 28 anos que sobreviventes e familiares de quem perdeu a vida nas escaramuças constituíram-se numa fundação que, de um tempo a esta parte, vem clamando junto do partido Estado, MPLA, a quem atribuem as responsabilidades do sucedido, a devida reparação/indemnização pelos danos que a intentona provocou no âmago dos angolanos.

“Entre sim e o não”, o Governo angolano garantiu resolver o “passivo 27 de Maio”, segundo anunciou recentemente o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz. Contudo, o nosso entrevistado é o vice-presidente e instituidor da “Fundação 27 de Maio”, o general José Adão Fragoso.

Por favor, acompanhe a entrevista na íntegra:

Club K: No próximo dia 27 de Maio assinalam-se 42 anos sobre os acontecimentos do 27 de Maio, enquanto as negociações decorrem há 28 anos. O ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz, citado pelo Jornal de Angola, anunciou recentemente pagar a reparação dos danos às vítimas. Acredita que desta vez o “passivo” será resolvido?
José Fragoso: O pronunciamento do senhor ministro é bem-vindo. Isso teve início antes de o Presidente da República seguir a Portugal e depois foi secundado pelo Presidente João Lourenço em Lisboa. De nossa parte, deixamos nas Nações Unidas uma queixa-crime. Por conta disso, foi levantada esta queixa e penso que este pronunciamento está na base da pressão interna e também externa.

As negociações levam anos, qual será a próxima intervenção da fundação se o problema não for resolvido?
Pensamos que desta vez o processo vai ser resolvido. Mas é bom ser resolvido na nossa vigência, nós que tivemos envolvidos directamente no processo. Ao contrário, poderá trazer consequências graves aos nossos filhos, aos órfãos que não poderão estudar e podem vir a ser delinquentes quando souberem que os seus pais foram mortos por A ou B. Entretanto, podemos evitar isso.

Que projectos a fundação tem para com os associados quando o Governo angolano ressarcir os danos às vítimas do processo em causa?
Depois deste passivo ser resolvido vamos preocupar-nos com a área social. A Fundação também consagra no seu estatuto, áreas sociais, criação de empresas, para apoiar os despossuídos, como crianças órfãos e não.

A Fundação nunca teve apoio de organizações internacionais ou nacionais para a manutenção de subsistências às vítimas e seus familiares?
Uma Fundação como a nossa e com o regime político que Angola tinha, não seria possível. Tentamos por várias vezes encontrar parceiros para apoio, sobretudo estrangeiros, não foram permitidos pelo regime. Senão a fundação estaria a ajudar os esforços do próprio Governo em questões sociais tais como a construção de postos médicos, escolas, etc. Isso tudo está apenas no papel.

A Fundação apresentou uma proposta com planos de necessidades ao Governo?
Nesta fase há mais abertura. Por que não o senhor João Lourenço não entregar uma empresa à Fundação 27 de maio, uma vez que estamos numa fase de privatização de empresas estatais?! É isso que vamos pedir ao executivo.

Que avaliação faz da governação de João Lourenço, uma vez que na sua vigência o passivo de 27 de maio tem novas garantias de possível resolução?
A indicação de João Lourenço pelo José Eduardo dos Santos para Presidente da República foi uma dádiva. Porque eu nunca consegui entender como é que José Eduardo desavindo com João Lourenço ainda assim o indica para dirigir o país. Porque se fosse um outro dirigente, como o actual vice-presidente da Republica, Bornito de Sousa, o país estaria pior. João Lourenço que é próprio do MPLA. Apesar de ele ter começado mal com as detenções de individualidade já conhecidas, antes de as investigar.

A Fundação tem representação em todo país?
O massacre de 27 de Maio atingiu todo país e até no estrangeiro, de onde muitos angolanos foram repatriados para Angola e presos outros fuzilados. Entretanto, temos a sede em Luanda, mas com algumas representações ao nível das províncias como Huambo, Bié, Huíla, Benguela, Bengo, Uíge e nas Lundas, mas estas não funcionam por questões financeira, mas temos tido correspondências e o controlo de muitos.

Quem responde pela Fundação no estrangeiro onde o senhor diz haver também vítimas?
Temos um acordo de princípio com Associação 27 de Maio de direito português, onde pertencem o Edgar Valles, José Reis, Francisca Van-Dúnnem, actual ministra da Justiça portuguesa, com M27, criada em 2018, uma organização de órfãos do 27 de Maio, também de direito português. Estas organizações vão abarcar o processo para possíveis negociações com o MPLA Estado. Desde 2015 temos estado a interagir. Temos uma representação oficial na Suíça que representa a Fundação na Europa, na pessoa de Raimundo Sousa Santos. Temos também na Alemanha um grupo muito forte.

Quantos associados a “Fundação 27 de Maio” tem sob controlo?
Mais de mil membros, mas a cada dia que passa vão morrendo. São indivíduos que ingressaram para tropa com 15 ou 16 anos não puderam estudar, estão desempregados, ficaram sem os lares. No passado tínhamos o controlo dos sobreviventes quando se notava que havia qualquer coisa em compensação ao seu favor. Quando o MPLA patenteou a título próstomo alguns comandantes mortos no 27 de Maio, seguiu-se também patenteamento de alguns de nós.

São raros que não têm companheiros que o viu na cadeia

O 27 de Maio é comemorado no seio da fundação em memória às vítimas?
O 27 de Maio era comemorado como feriado nacional, de 1977 até 1991, o país parava. Depois que descobrimos que os tais comandantes foram mortos pela ala presidencialista de Agostinho Neto, então deixou de ser feriado nacional

De que maneira a fundação acha que as vítimas do 27 de Maio devem ser homenageadas?
Se de facto os pronunciamentos do ministro prevalecer nas negociações, parte daquilo que defendemos, é a construção de um memorial, emissão de certidões de óbitos aos órfãos, indemnizações isso conta numa gama de princípios gerais que a fundação propõe.

Qual deve ser o valor que cada família do 27 de maio deve receber do Governo?
(…) a vida não tem preço. Enquanto fundação, em relação aos sobreviventes que foram militares, somo de opinião e isso é que vamos apresentar que os mesmos sejam levados a categoria de oficiais superiores, mas todos mesmos. Porque se não fosse o fantasma do 27 de maio, muitos hoje seriam generais.

Quais são os critérios para se identificar e cadastrar quem é verdadeiramente vítima ou militar nesse período de 27 de Maio?
São raros que não têm companheiros que o viu na cadeia. Nós como fomos comandantes conhecemos muitos deles. Portanto, quanto a isso não haverá dificuldade em identificar as vítimas e militares deste processo.

Aquelas pessoas que também foram vítimas do “27 de maio”, mas por várias razões acabaram por se dissociar do processo, também vão beneficiar das indemnizações?
(…) Não vamos afastar ninguém deste processo. Falando sobre este aspecto, enquanto vice-presidente da fundação, convidei o senhor Luís dos Passos para participar do Conselho Consultivo Alargado. Temos um sentimento patriótico, sabemos porque razão Luís dos Passos e outros deixou-se levar para o regime.

Convidar dissidentes desavindo com a Fundação é uma forma de perdoar quem fez parte dos confrontos que resultou em dezenas de milhares de mortos?
O lema da fundação é “Perdoar sim, mas esquecer nunca”. Mesmo aqueles que se tinham afastados de nós, estão a regressar aos poucos e temos estado a conversar. Aliás, muito recentemente tivemos um encontro com os associados para dar a conhecer sobre o andamento do processo relacionado com a comissão que o Presidente da Republica indicou.

Sou patriota e sempre serei

Na condição de activista dos Direitos Humanos, instituidor da fundação, à qual é vice-presidente, uma vez ter sido dos poucos sobreviventes do processo em causa, perdoa algumas entidades políticas e dirigentes do MPLA que numa das suas obras literárias o senhor citou-os “Os matadores de 27 de Maio”?
Sou patriota e sempre serei. O nosso lema diz tudo. “Perdoar sim, mas esquecer nunca”. Quer dizer que todos já andam perdoamos. Cruzamos e conversamos sem problemas de rancor nem ódio. Enfim, muitos que agiram negativamente, com eles não temos problemas, convivemos. O Angolano sabe perdoar.

Enquanto activista dos Direitos Humanos como olha para a pobreza em Angola?
Eu aprendi que os povos que se destacam numa luta revolucionário ou pela independência de um país, são esmagados depois do triunfo. Isso é que acontece em Angola. Tenho dito que os dirigentes do poder político em Angola são insensíveis. Angola é bastante rico. Se no tempo colonial tudo que se consumia neste país era produzido internamente, porque que agora tem de se importar tudo. Isso é ganância dos homens para obter lucros fáceis através de sobre faturações e comissões.

Acredita que Angola tem tudo para que o cidadão viva em melhores condições do vive actualmente?
É dramático e lastimável. O povo angolano não merece isso. Não existe nenhum mineral que não há em Angola. Tudo que é mineral Angola tem. O por que desta miséria?! Eu não uso o termo de falta de vontade politica, mas sim falta de vontade humana.

Não teme pela própria vida ao conviver com quem já teve relação de “inimizade” e pelas suas intervenções?
(Risos) em nenhum momento senti medo. Sou destemido por natureza. Em momento algum pensei que alguém pudesse me tirara a vida senão o dono que é Deus. Eu já fui tentado por cinco vezes pelos meus conterrâneos do 4 de Fevereiro. Enviaram jovens para me abater. Mas felizmente aparece uma outra voz que disse, não façam isso. Porque o problema é que eles admiram pelo facto de eu ser natural de Catete e ser contra as políticas do MPLA.

Já fui tentado por cinco vezes pelos meus conterrâneos

O que se defendia nas reuniões com Nito Alves, uma vez que já tinha sido ministro do Interior, ao ponto de se motivar uma manifestação de massas que mais tarde viria resultar numa chacina?
Se tivéssemos dado um golpe de Estado para depois separarmos o trigo do joio, se calhar, não teria morrido muita gente. O Nito Alves como marxista-leninista de gema era contra o golpe de Estado. Nito ficava chateado quando durante as reuniões ouvisse falar de golpe de Estado. Ele disse, “vamos levar as massas até ao palácio para persuadir Agostinho Neto para depurar alguns elementos já nocivos no processo revolucionário político, naquela altura. Esse era o objectivo da manifestação. Agostinho Neto aceita, na devida altura muda de posição. Quando estivesse com os ditos fraccionistas tinha uma linguagem e quando tivesse com outro grupo tinha outra linguagem, Neto foi muito duro.

Portanto, como caracteriza a intentona de 27 de Maio?
Foi uma manipulação arquitectada pelo MPLA para bloquear as mentes de jovens que pensavam diferente. O objectivo era matar para ninguém mais se levantar, foi um medo incutido. Portanto, o povo angolano só conhece o medo imposto até hoje.

Como eram os discursos de Nito Alves junto das massas para ser contrariado pelo próprio MPLA de que era militante?
Nito era tido como um político muito influente das massas. Os seus discursos encarnavam o pensamento e o sofrimento do povo. O que custou ao Nito foi quando dizia, “enquanto em Angola negros, mulatos e brancos em circunstâncias iguais não varrerem as ruas e limpas os escritórios, o racismo não desaparecerá”. Isso foi a sentença da morte de Nito Alves e outros.

O que o “poder popular” apregoado por Nito Alves significava para as massas?
O “Pode Popular” é isso que agora estamos a falar, as autarquias, o que Nito já defendia naquele tempo. O Nito realizou como experiência piloto sobre estas eleições ao nível de Luanda. Isso foi o cerne do 27 de maio. Porque aqueles que tinham sido bufos, informadores que estavam a emperrar o processo político militar pela independência, não foram admitidos nessas eleições da experiência de Nito Alves. Entretanto, a Constituição da República Popular de Angola já consagrava essas eleições que o MPLA não quer realizar em todos os municípios. Eles diziam que o Nito era defensor dos pés descalços, queria entregar o poder a estes e aos analfabetos. Naquele tempo já havia pessoas com capacidade para poder dirigir um município ou uma comuna.

Há 28 anos em negociações com o partido Estado, MPLA. O que faltou da parte da fundação para que até hoje o problema não fosse resolvido?
De nossa parte nada. Começamos a exigir do Governo assistência com às vítimas desde 1991 com o surgimento do multi partidarismo, onde nós os sobreviventes constituímo-nos num partido político que se chamou Partido Renovador Democrático (PRD), entre os seus objectivo, visava lutar para que este passivo fosse efectivamente resolvido.

A constituição do partido PRD não garantiu influências para se acelerar o processo, porque?
(…) nem pensar. Meses depois, a liderança do partido na pessoa do senhor Luís dos Passos encetou um acordo com a direcção do MPLA que visava matar o propósito do “PRD”, o que acabou por acontecer. Quando nós contestamos a tal aliança com o regime, que visou com a entrega de 10 milhões de dólares, Luís dos Passos orientado pela direcção do MPLA expulsa todos aqueles que não concordavam com a tal aliança administrativamente. Assim tivemos de criar outra instância que é a “Fundação 27 de maio”, cuja a sua legalidade teve milagres, porque não é possível legalizar uma fundação com princípios diferentes ao do regime, como a nossa.

Luís dos Passos também teria sido umas das vítimas de 27 de maio, porque razão este terá compactuado com o sistema para extinguir o partido “PRD”?
(Risos) meu caro jornalista! São poucos, não só em Angola, mas no mundo que não gostam do dinheiro sem suor, talvez por isso. Também pela pressão da própria família. O MPLA depois fez uma chantagem, ao exonerar o seu irmão, Boaventura Cardoso, do cargo de ministro da Informação, pelo José Eduardo dos Santos, como Presidente da República, na altura, no sentido de persuadir o seu irmão Luís dos Passos, para aderir as políticas do MPLA, e assim aconteceu.

Qual era o cargo que o senhor desempenhava no partido “PRD”, para hoje ser vice-presidente da Fundação 27 de Maio?
Fui o patrono do PRD. O individuo que na altura entregou um cheque de seis milhões de kwanzas, o que equivalia 360 mil dólares que permitiu a sua instalação representativa em todo país. Mesmo assim fui expulso do PRD e da função pública, porque eu trabalhei no Conselho de Ministro como funcionário superior, fui radicado da função pública e até agora nunca pagam a minha pensão de reforma de que tenho direito, porque totalizei o tempo bastante para ter a pensão. Mas isso é uma questão política, a tendência é de me destruir psicologicamente.

A Fundação ora criada mantinha contactos directos com entidades afins?
Depois de se ter publicado no Diário da República, endereçamos um dossier ao Bureau Político do MPLA a dizer que o processo iria continuar porque a fundação foi criada para fazer frente à direcção do MPLA, uma vez ter sido o MPLA a começar com o processo, tinha de ser o mesmo a termina-lo.

Nunca tinham tido resposta de todos solicitações feitas junto do MPLA para que fossem assistidos?
Em 2001, no primeiro conselho consultivo da fundação, o MPLA apercebeu-se de que iríamos exteriorizar o nome dos matadores do 27 de maio. Então, de forma cínica, o MPLA emite pela primeira vez uma declaração através do Bureau Político, onde já não nos chamavam de “golpistas nem de pequenos burgueses”, mas sim de “compatriotas incompreendidos”. A declaração dizia que houve indivíduos que agiram a margem das instituições criadas para o efeito e que haviam de resolver um passivo criado pelo 27 de maio.

Para a fundação, qual era o objectivo da primeira declaração por parte do MPLA, uma vez que até agora não têm o problema resolvido?
A intenção era a de impedir que as exteriorizações dos nomes dos assassinos fossem divulgados. E, volvidos 11 anos, em 2013, quando pretendíamos fazer entrega de uma carta, com a presença de todos membros associados, mais de mil inscritos, na altura, ao aperceberam-se que devíamos aparecer defronte da sede do MPLA, o vice-presidente do partido, na altura, Roberto de Almeida, voltou a emitir a mesma declaração, apenas com alterações na data e alguns termos semelhantes. Desde este período nunca mais houve qualquer pronunciamento.