Luanda - Jaime Azulay é um dos mais aguerridos jornalistas angolanos. Advogado de profissão, tem sido um dos principais analistas da viragem observada no seio do maior partido do país: O MpLA. por esta razão, aborda nesta conversa os meandros das alterações vividas no seio dos camaradas, assim como as possíveis mudanças no vII Congresso Extraordinário que começa amanhã no Centro de Conferências de Belas, no Futungo, em Luanda

Fonte: OPAIS


O MPLA reúne-se em congresso, quais são as novidades que espera, nove meses depois de João Lourenço ter sido eleito presidente deste partido num Congresso Extraordinário?

O MPLA está a gerir internamente manifestações que indiciam uma das suas rupturas cíclicas, a segunda, depois de ter assumido o poder em Angola. A transição de Eduardo dos Santos para Lourenço está longe de ser exemplar para o paradigma de um sistema verdadeiramente democrático. Há, notoriamente, um confronto surdo entre duas visões estratégicas de liderança, cujo desfecho inicialmente se presumia ser totalmente favorável ao movimento reformista do novo presidente, mas alguns desenvolvimentos de última hora indicam que a chamada “ala dos marimbondos” resiste e não cairá sem luta. Enquanto o povão se diverte com os áudios hilariantes de Tchizé dos Santos, há um “estado-maior”, instalado nas sombras, algures na Europa trabalhando noite e dia em artifícios para a sua sobrevivência e dos seus biliões de dólares retirados ilicitamente de Angola. É um poder económico que não sobreviverá se não estiver em paz com o novo Presidente da República.

 

Já se pode falar de uma marca à João Lourenço à frente dos destinos do MPLA? Cerca de 10 meses depois de se afastar a síndrome da bicefalia, valeu a pena um Presidente da República ao mesmo tempo líder do partido no poder?

Há, de facto, uma marca João Lourenço, que é fruto da legítima expectativa deste povo que suportou ao limite as injustiças de um dos regimes mais corruptos do mundo, mas há uma sombra que implacavelmente o persegue e com a qual tem demonstrado algumas dificuldades em lidar, porque todos os dias tropeça na imensa teia de ilegalidades tecida no consulado anterior. Cada fio que puxe para tentar corrigir uma grande distorção, aparece a Isabel, lá vem o Zenu, ou o Kopelipa, ou o Dino. Isso deixa- lhe poucas alternativas na sua decisão de avanço no que toca ao corrigir o que esta mal sem que choque frontalmente com os interesses instalados. Foi o que aconteceu. Primeiro dava impressão que havia um ressentimento obsessivo de motivação pessoal e ficava a imagem que estávamos a assistir uma perniciosa e desgastante luta de egos. Infelizmente não existe mais tempo disponível para continuar a fazer mais experiências. O poderoso império criado pelo antigo Presidente é uma realidade e joga as suas cartadas a mostrar claramente que sem eles o desenvolvimento de Angola não acontecerá. Então, as pessoas querem entender que futuro João Lourenço reserva para o seu antecessor, uma vez que as blindagens eméritas e outras estão a ser parcialmente desmanteladas. Se não os consegue exterminar dos círculos do poder, então que diga claramente ou proporcione que o próprio MPLA debata o futuro de JES, nos dois cenários possíveis: ou da sua responsabilização perante a História pelo descalabro e criminoso saque de um dos países mais portentosos do mundo, ou da reabilitação da sua imagem perante a História, relevando o que fez de mal e exaltando o valor do seu papel de liderança durante a guerra contra a África do Sul racista e a conquista da paz definitiva em 2002.

 

Desde que chegou à liderança do partido, João Lourenço tem sabido dissociar a gestão do país da do partido? Há quem diga que ele esteja muito afastado de algumas acções do MPLA. É uma acusação infundada?

Desculpe, mas aqui não se distingue o MPLA do Governo, desde 1975 que é assim. Lourenço teve o seu tempo de graça para separar as coisas e apostar no reforço do poder institucional do Estado, mas vacilou no momento em que devia confirmar que o seu espírito reformista era genuíno e não circunstancial. O tempo não espera por ninguém. Agora começa a enfrentar algum descrédito, surge uma crescente contestação de vários sectores da população. Já há músicas de contestação de “rappers”, depoimentos e alertas que indicam que a lua-de-mel terminou. O pior que pode acontecer será o Presidente entender que essas manifestações são unicamente fomentadas pelos círculos hostis à sua liderança. Pode ser que as haja, mas outras são mesmo legítimas e de cidadania e devem ser atendidas, porque houve promessas e uma promessa ao pobre vira dívida. Quando o Presidente completou o seu primeiro ano de mandato, nós alertamos que não se deveria cair na tentação de endeusá-lo, porque o seu desafio colossal estava apenas no começo. Fomos muito mal interpretados e creio que até perdemos amizades que vinham de largas décadas. Mas a realidade demonstra agora em que posição do percurso de implementação da sua agenda reformista o PR está. Está apenas no início, apesar de ter dado passos importantes e que devem ser honestamente reconhecidos.

 

As últimas alterações efectuadas ao nível do Bureau Político depois do último conclave têm surtido o efeito desejado?

Internamente, no MPLA há um vulcão em actividade e nisso eles sabem gerir a crise entre as quatro paredes, porque tem a perfeita noção de que o que está em jogo é a sua própria sobrevivência. No seu longo percurso de luta, o MPLA nunca teve medo do que vem de fora, apesar de se ter assustado agora com a UNITA nas exéquias do Dr. Savimbi. O MPLA só teve e tem medo de si próprio, do que vem de dentro e, infelizmente, não abdica dessa herança retrógrada do leninismo mal digerido de não conseguir aceitar as vozes discordantes que reclamam uma verdadeira democracia interna. Por essa razão procura controlar tudo, por isso há este jogo de poder que se desenvolve no posicionamento das peças na composição do BP e do CC para o novo ciclo que inicia após este congresso. Há silenciosas cumplicidades e um complexo malabarismo de interesses pessoais e sectários que relegaram para segundo plano o debate sobre a premente necessidade de conformar a actuação dos membros da cúpula com a matriz ideológica do partido. João Lourenço está a cair na tentação de lançar mão aos mesmos métodos de Dos Santos para o reforço da sua liderança. No Bureau político, nestes derradeiros dias antes do Congresso Extraordinário, ainda não é perfeitamente claro para onde pende o fiel da balança na correlação de forças. Basta olhar a fotografia para vermos que, com excepção da vicepresidente e mais um ou outro, são praticamente as mesmas pessoas, aquelas que estiveram ao lado de JES e beneficiaram dos esquemas da “Acumulação Primitiva”. Eles procuram convencer João Lourenço a evitar o risco de despoletar uma incontrolável crise interna que poderia conduzir a uma implosão em cujas chamas se imolaria o próprio MPLA, porque, afinal, uns mais e outros menos, todos comeram quando o banquete foi servido. São políticos experientes e dotados de invulgar capacidade de ginga e de sobrevivência e agora também são autênticos capitalistas e latifundiários com biliões de dólares em seu poder. Como praticamente todos eles tem rabos de palha, não lhes convém que o tal fogo que queima os marimbondos continue aceso. O BP representa estatutariamente o centro nevrálgico onde se discutem as grandes opções e JLo precisa ter ali homens de alta confiança para conseguir consenso para as grandes decisões que podem afectar a família e colaboradores do antigo PR e não apenas figuras que levantam a mão para votar a favor e depois vão para a “resistência passiva”, inviabilizando as acções do presidente.

 

A injecção de sangue novo, no Comité Central, com mais 100 integrantes é um dos pontos fortes do conclave. Qual é o propósito?

São decisões que respondem a uma estratégia de afirmação da liderança do novo líder. Infelizmente a JMPLA foi transformada num corpo politicamente inerte, apenas activo nas manifestações e maratonas e são a montra onde o jovem tem de ir para ser visto e ter cartão, se quiser progredir na carreira profissional ou arranjar um emprego. O espírito irreverente, reivindicativo e comprometido com a pátria foi enterrado com o 27 de Maio de 1977 e nos anos que se seguiram. Agora vejo os jovens que ascenderam nas práticas nepotistas, que ainda imperam, a assumirem comportamentos mais retrógrados do que os mais velhos do MPLA que os lançaram. São arrogantes e intolerantes, uns autênticos boçais políticos, apesar dos títulos académicos que ostentam e os cargos que ocupam. E é isso que preocupa, porque eles falam em nome de um MPLA de ideais nobres cuja História nem sequer conhecem. Não cumpriram serviço militar e tampouco tiveram uma educação patriótica onde alguém lhes ensinasse claramente que acima de tudo esta a Pátria.

 

Depois desta entrada dos mais de 100, sobretudo jovens, estaremos já a falar de uma mudança geracional nas hostes do partido, ou trata-se apenas de um expediente de reforço de poder e de diluição dos “eduardistas” que ainda pontificam no Comité Central?

Vou reconhecer honestamente que JES surpreendeu-me completamente ao não ter introduzido o seu filho Zenu para o suceder, como amiúde acontece em Africa, vejam o Congo, Gabão aqui próximo. Sempre pensei que, pela estrutura de poder que ele construiu, apenas o seu varão garantiria a sua sobrevivência futura com ele na sombra a dirigir. Totalmente desgastado, preferiu apostar em João Lourenço entregando-lhe o poder como uma camisa de forcas com a qual procura agora subjugá-lo para preservar a sua influência. Agora a táctica é a das hienas que vencem a presa pelo cansaço. A chamada transição geracional que dizem estar em curso já vem ferida de morte desde o seu início. Ela não foi criteriosa e, salvo algumas excepções, houve uma manipulação grosseira dos estatutos para lançarem os filhos, sobrinhos e afins. Então, no jogo das cumplicidades a que me referi, amor com amor se paga: tu metes um filho e um sobrinho e eu meto dois sobrinhos e o assunto fica encerrado.

“O poder de João Lourenço ou de outro que lhe seguir só será suficientemente forte se fugir da tentação e abdicar do poder absoluto” man”

 

A escolha dos novos integrantes do Comité Central não foi tão pacífica em algumas províncias e organizações, com realce para Benguela e Lunda-Norte. O que se está a passar na realidade?

Em Benguela, no MPLA há um divórcio entre a direcção do MPLA e a massa militante. E isso não veio com o Rui Falcão, nem com o Isaac dos Anjos, veio de muito antes, das lutas entre o falecido Dumilde Rangel e o Zeca Moreno, mas na sombra estava o Geremias Dumbo. Teríamos de recuar até 1975, quando o Presidente Neto foi de automóvel, num Citroen, de Benguela até Quinjenje, e na base de injectar sangue camponês nas estruturas dirigentes do movimento, muitos jovens dedicados foram recrutados. Ascenderam no tempo do partido único e do Kundi Payhama porque eram dedicados e muito leais à causa. Mas chocavam com a militância urbana do MPLA nas grandes cidades. Eles ficaram em silêncio no consulado de Paulo Jorge, mas quando veio o Dumilde Rangel, já com a instauração do multipartidarismo e com as lutas dele com o Zeca Moreno, que eram os dois “urbanos”, aproveitou o Geremias Dumbo que com grande sentido de oportunidade fez avançar a sua malta nos vários segmentos da hierarquia do poder. Quando soou o apito da “acumulação primitiva”, o pessoal estava em posição privilegiada e começou a ter aquilo que sempre lhes foi “O poder de João Lourenço ou de outro que lhe seguir só será suficientemente forte se fugir da tentação e abdicar do poder absoluto” man” negado: o dinheiro. Era a única forma de eles conseguirem um “status” económico para fazerem frente a ascensão económica da “elite urbana” que saiu da direcção das empresas estatais que faliram durante a sua gestão, as privatizaram a preço de bagatela e se tornaram nos novos ricos de Benguela e estão aí. Desde que chegou, o Rui Falcão gasta o seu tempo a gerir as manifestações dessas tensões, tentando incutir neles a fidelidade canina ao MPLA, quando o seu interesse é o dinheiro e o património e o controlo dos cargos políticos para conseguirem os seus intentos. Não estão contentes com ele, porque o Rui eliminou-lhes as fontes de rendimento que eram o negócio do lixo, o das merendas escolares, as comissões e sobre facturação do valor das obras públicas, etc..

 

João Lourenço sairá deste Congresso como o verdadeiro homem forte do MPLA? Até que ponto os fantasmas de Eduardo dos Santos ainda interferem na gestão dos assuntos do partido que governa o país?

Como já referi, a lógica de poder vigente em Angola assenta uma lógica de partido-Estado. Com os super-poderes que derivam da Constituição de 2010, José Eduardo debilitou ao máximo as instituições do Estado, desprovendo-as do seu poder soberano e independente. Manietou os escalões mais altos do poder judiciário, transformou o parlamento num “vale dos caídos”, retirando-lhe a sua essência que é a exclusividade da competência legislativa: a fiscalização dos actos do Executivo. Numa palavra, não existem contra-poderes idóneos nem aquele poder judicial que garanta o controlo da constitucionalidade das Leis, dos direitos e liberdades fundamentais, do pleno exercício da democracia participativa dos cidadãos e da observância do principio da legalidade dos actos dos órgãos do Estado e da Administração Pública. O que existe é a “democracia controlada” com a completa partidarização das instituições do Estado ao bom estilo soviético. O poder de João Lourenço ou de outro que lhe seguir só será suficientemente forte se fugir da tentação e abdicar do poder absoluto do “big man” e de seu rol de aduladores e enveredar pela concretização de uma motivação genuína de mudança.

 

A suspensão da deputada Welwitschia dos Santos, filha do ex-Presidente do MPLA e da República, José Eduardo dos Santos, pelo Comité Central, não é um mau sinal para os camaradas nesta fase?

Acredita que existiram argumentos suficientes para que se tomasse tal medida, embora não definitiva? Mau sinal? Não creio. Embora a democraticidade no seio do MPLA sempre foi e é um défice e um grande problema, o caso da Tchizé passou a ser um jogo infantil quase a roçar a obscenidade. Tchizé não representa nenhuma revelação na política e pela sua infantilidade só lhe deveria ser permitido militar na OPA. Personifica na perfeição, como em Angola e no MPLA se processava a ascensão dos quadros. Algumas coisas que ela diz teriam algum sentido se saíssem de outra boca.

 

O partido aprovou há pouco tempo um código de conduta e de ética. Acredita que outros ‘camaradas’ poderão ser alvos de medidas disciplinares, sobretudo os envolvidos em casos de corrupção?

A social-democracia propalada como matriz ideológica do MPLA sucumbe sistematicamente aos resquícios e atavismos da inspiração leninista, que limita e condiciona a sua democraticidade. Dá a impressão que tais códigos de conduta são feitos para serem aplicados a determinados membros ou grupos, quando deveriam ser inquestionavelmente de natureza abstracta. Até hoje não entendo qual é o medo que essa gente tem das redes sociais, nota- se mesmo quando falam nelas. E esses que falam em limitar ou “controlar naquela base” o uso das redes sociais não possuem qualquer experiência na sua utilização. É quase uma obsessão. Devem mentalizar- se que as redes sociais estão aí para ficar e temos de aprender a lidar com elas. Só se doma um cavalo bravo montando nele.

 

Como é que interpreta o silêncio do presidente José Eduardo dos Santos cerca de um ano depois de ter saído da liderança do MPLA?

Um silêncio que de vez em quando preocupa, mas que define o tipo de pessoa que ele é: um jogador que joga com cartas escondidas. Faz muito tempo que JES deixou de chamar as pessoas pelo nome. Para ele, cada pessoa passou a ter um preço, em função do qual arregimenta cumplicidades e fidelidade. Como animal político com vasta experiência na liderança de homens em situação de pressão, o seu silêncio inquieta, não hajam dúvidas. Levou 38 anos a construir o seu império de liderança, foi cirúrgico e metódico quando precisou, mas em todas as circunstâncias preferiu sempre esboçar um sorriso cínico e matreiro do que mandar um “porra” e dar um murro na mesa. Mas depois contra-atacava pelos flancos e aí era demolidor para com os seus adversários. Os últimos anos do seu longo consulado foram um autêntico desastre e um bom exemplo de como não se deve governar um país. O centro do poder mais se assemelhava ao pandemónio de um circo decadente, onde conselheiros de alto gabarito tinham de tropeçar em palhaços da pior estirpe e não conseguiam fazer chegar os alertas ao chefe de que o espectáculo estava a chegar perigosamente ao fim. Ficou totalmente inebriado pelos “petro-dolares”.

 

Perfil

Jaime Victorino Azulay nasceu no Sumbe, Cuanza-Sul. 58 anos. Foi oficial nas Forcas Armadas Populares de Libertacao de Angola (FAPLA). Actualmente é advogado, jornalista e docente universitário no Instituto Superior Católico de Benguela nas disciplinas de Direito do Ambiente e Urbanismo e Direito dos Recursos Naturais. Tem duas pós-graduações em direito e é finalista do mestrado em Direito de Petróleo e Gás na Universidade Agostinho Neto.