Luanda - O Jornal de Angola fez, na edição de 27 de Maio último, uma abordagem aos acontecimentos que marcaram a data no país, em 1977. Sabíamos, mal pensámos em conceber o projecto, que pisávamos território delicado, traiçoeiro e que, se não tentássemos o equilíbrio, a equidistância e a sobriedade, teríamos sobre nós o peso de uma eventual insatisfação ou até ira de pessoas e instituições que se sentissem, eventualmente, injustiçadas ou sonegadas nalgum direito que lhes coubesse, por exemplo, no âmbito do contraditório ou da preservação da imagem.

Fonte: JA
A responsabilidade de que fomos acometidos, quando nos absorvemos na tarefa de revisitar, para trazer à consideração do leitor, os acontecimentos de 27 de Maio de 1977, foi de tal dimensão, que logo nos assaltou o receio de que, à luz das vontades e das liberdades de que goza cada um de nós, dificilmente teríamos uma abordagem completa, uma verdadeira dissecação, que trouxesse à conversa todas as partes interessadas ou envolvidas.

 

E as nossas apreensões acabaram por se concretizar, infelizmente. Aliás, os trágicos eventos que escolhemos reviver, em nome da História e da necessidade de documentar a nova geração de angolanos, embora permaneçam despertos, nem sempre encontram campo ou predisposição, na hora de serem discutidos.

 

Portanto, não pudemos trazer à discussão a diversidade de perspectivas que os acontecimentos de 27 de Maio de 1977 obrigam. Desde cedo que aventávamos esta possibilidade, que, quando se consumou, tratámos, neste mesmo espaço, de detalhar os meandros que envolveram a produção do "dossier". Dissemos, então, que nos propusemos "produzir um trabalho abrangente, equilibrado e equidistante, sóbrio como só o âmbito jornalístico. Mas não o conseguimos tão cabalmente; não atingimos a plena felicidade.

 

O nosso objectivo de prestar um completo serviço público por que tanto se clama esbarrou contra outras vontades, guarnecidas no direito que também lhes assiste de preferirem o silêncio, de se resguardarem da visibilidade, a mínima que seja". Portanto, em mãos, o leitor teve o contributo possível ...

 

Assim, magoou-nos a carta que nos chegou, à guisa de direito de resposta, de uma entidade, para “protestar pela parcialidade, desproporção e desequilíbrio havido na publicação das matérias referentes ao 27 de Maio”. O documento considera "preocupante que a quase totalidade das pessoas ouvidas sejam todas golpistas".

 

Além de avaliar que o “Jornal de Angola prestou um mau serviço ao não ouvir as pessoas que combateram os golpistas e seus apoiantes”, a carta solicita que “volte a publicar com o mesmo destaque e número de páginas uma nova matéria, ouvindo pessoas do lado dos que se opuseram ao golpe”.

 

O teor da carta desilude-nos, porque traz à luz a ideia de que os esforços empreendidos para a produção da matéria foram inglórios. Também queríamos que as entidades a que o documento se refere tivessem dado voz. Mas não o fizeram. Foi-lhes solicitado. Recusaram-se, alegando uma diversidade de razões. Curiosamente, quem assina o protesto, que dá o Jornal de Angola como tendo prestado “um mau serviço”, também foi procurado e se negou a dar entrevista.

 

Na conversa, afirma que está cansada do assunto e que tem sido sempre a única pessoa a falar. Por isso mesmo, por ausência de contraditório, os depoimentos de alegadas vítimas acabaram condicionados; não se lhes permitiu que apontassem eventuais culpados pela detenção ou pelo calvário que terão vivido. A narrativa cingiu-se, pois, à experiência pessoal, sem juízos de valores que se repercutissem sobre terceiros.

 

Não queremos supor que a carta e a instituição que a suporta tragam velada a sugestão de que devíamos congelar depoimentos de quem se predispôs a falar, porque interferia com os interesses de “pessoas do lado dos que se opuseram ao golpe”. Mas a reclamação dá que pensar. Aliás, a matéria dedicou algumas linhas à “Comissão de Lágrimas”, talhada, segundo relatos, para ouvir pessoas directa ou indirectamente ligadas aos acontecimentos: “não houve quem se mostrasse disponível e ... na insistência, a repórter ouviu, de um dos então membros, um almanaque de ameaças, com tribunais e processos à mistura”.

 

E sempre preocupado em agir com lisura, em momento algum o Jornal de Angola indicou as entidades ou figuras que se negaram a conceder entrevistas, assim como agora considera irrelevante citar quem também optou por não falar, mas, paradoxalmente, se vê no direito de “protestar pela parcialidade, desproporção e desequilíbrio havido na publicação das matérias referentes ao 27 de Maio”. É preciso repetir que não move este diário (nem o grupo do qual é parte) o desejo de acirrar ódios e estimular mágoas; que o 27 de Maio de 1977 já foi trágico o suficiente para que ainda se socorra dele para se continuar a criar situações passíveis de dividir angolanos. O país já andou fraccionado tempo demais.

 

Há, entretanto, um aprendizado a absorver do conjunto desta situação lamentável: nem sempre é opção vantajosa permitir que outros falem, enquanto nos devotamos ao silêncio; nos voluntariamos no gesto de guardar para nós um contraditório que faria incidir nova luz sobre um assunto.

 

Surpreende-nos, por outro lado, que alguém que tenha dado voz às supostas vítimas do 27 de Maio de 1977, em depoimentos previamente concertados, para os quais foram definidas regras, se tenha socorrido de uma publicação digital para se queixar de censura. Compreendemos que ele ansiasse por ver publicada a totalidade da entrevista no Jornal de Angola, mas as razões para que assim não ocorresse foram-lhe explicadas. Agora, dar a matéria a publicar num outro órgão não nos parece uma atitude certa, nem um gesto decente.

Há outras formas de dirimir mal-entendidos.